Usando IA no Direito: Large Language Models (LLM's), Prompting e o Direito
O raciocínio jurídico raramente é uma estrada reta
O Imperativo do Pensamento Crítico frente ao uso da IA no Direito
Manipulando e gerando sequências de tokens baseadas em padrões aprendidos para potencializar raciocínio não linear com o conceito de "pensamento" como unidade conceitual dentro do framework ToT para guia de geração.
A – Escapando da Linearidade para aproximar a inferência da realidade jurídica
Escapar da linearidade na análise jurídica é fundamental devido à própria natureza complexa e multifacetada do Direito e dos problemas que ele busca resolver. Ao contrário de um cálculo matemático ou um algoritmo simples que segue passos pré-definidos, a análise jurídica frequentemente envolve navegar por ambiguidades, ponderar princípios conflitantes, interpretar textos (linguística), construir as explicações mais plausíveis para os fatos (raciocínio abdutivo) e buscar uma "verdade" jurídica que nem sempre corresponde a uma verdade factual única e objetiva (aspectos filosóficos).
Compreender por que a inferência linear se mostra perigosa para a análise jurídica, especialmente diante de casos complexos, exige reconhecer a própria natureza intrincada do universo do Direito.
Um dos riscos mais significativos reside na redução extrema da complexidade. O Direito opera sobre um sistema normativo vasto e interconectado, frequentemente marcado por ambiguidades e, por vezes, até contradições, que precisa ser aplicado a situações factuais inerentemente multifacetadas e muitas vezes incertas. Uma abordagem puramente linear força essa realidade densa a caber em um caminho único (se A, então B, se B, então C), inevitavelmente ignorando a rica teia de exceções, nuanças, princípios em tensão e possíveis enquadramentos legais alternativos que são a essência da prática jurídica. O resultado é uma compreensão superficial e perigosamente incompleta do problema em questão.
Essa simplificação excessiva leva diretamente à ignorância de interpretações conflitantes. Textos legais, a vasta e mutável jurisprudência, e até mesmo os próprios fatos apresentados em um caso, raramente ostentam um único sentido inequívoco. Uma análise que segue um percurso linear tende a se agarrar à primeira interpretação que parece razoável e prosseguir, sem sequer reconhecer ou explorar outras leituras igualmente, ou até mais, válidas. Isso se torna particularmente crítico em áreas do Direito onde a interpretação é a ferramenta primordial ou quando os fatos são controversos.
A fragilidade argumentativa é outra consequência direta. Uma conclusão alcançada por um caminho puramente linear carece da robustez que vem do confronto de ideias. Ela não foi posta à prova contra possíveis contra-argumentos ou vulnerabilidades inerentes às suas próprias premissas. Uma análise jurídica sólida, em contraste, prospera na dialética, na exploração de diferentes teses e na antecipação e refutação de objeções, algo que uma mente (humana ou simulada por IA) presa à linearidade não consegue performar eficazmente.
Finalmente, a falta de adaptabilidade é um entrave significativo. O Direito é um campo em constante evolução, com novas leis, mudanças na jurisprudência e fatos sociais que apresentam desafios inéditos. Uma forma de raciocínio rigidamente linear tem dificuldade em se ajustar a essas dinâmicas, em pensar de forma criativa ou em inovar soluções que, muitas vezes, emergem de combinações ou reinterpretações não-óbvias de elementos jurídicos e factuais.
Em essência, confiar unicamente em inferências lineares na análise jurídica é perigoso porque simplifica excessivamente, ignora nuances e conflitos, fragiliza a argumentação, aumenta a probabilidade de erros na aplicação do Direito e limita a capacidade de encontrar a solução mais adequada e justa para problemas complexos, que por sua natureza exigem a exploração e avaliação de múltiplos caminhos possíveis.
Neste cenário, devemos considerar objetivamente no uso de LLM's para problemas jurídicos os seguintes elementos de pensamento:
A.1. Aspectos Linguísticos:
Ambiguidade e Polissemia: Textos legais (leis, contratos, decisões judiciais) são escritos em linguagem natural, que é inerentemente ambígua e sujeita a múltiplas interpretações (polissemia). Uma leitura linear pode capturar apenas o sentido mais óbvio, ignorando nuances, contextos históricos, intenções do legislador ou das partes, e possíveis interpretações sistemáticas ou teleológicas.
Contexto e Interpretação: A interpretação jurídica exige considerar o texto não isoladamente, mas dentro de um sistema legal complexo (outras leis, jurisprudência, doutrina) e do contexto fático específico do caso. Uma análise linear tem dificuldade em "saltar" entre o texto específico, o contexto amplo do ordenamento e os fatos, explorando como diferentes interpretações linguísticas do texto interagem com esses elementos.
Argumentação: A argumentação jurídica não é uma progressão lógica linear simples (A -> B -> C). É um processo dialético onde diferentes interpretações e premissas são propostas, avaliadas, confrontadas e justificadas. Escapar da linearidade permite construir e explorar simultaneamente argumentos a favor e contra uma tese, antecipar contra-argumentos e identificar os pontos fracos de cada linha argumentativa.
A.1.2. Métodos de Raciocínio Abdutivo:
Construção da Melhor Explicação: O raciocínio abdutivo, muito presente no Direito (especialmente na prova dos fatos e na qualificação jurídica), busca a melhor explicação para um conjunto de observações (os fatos alegados/provados). Dado um efeito (o resultado jurídico ou o dano), procura-se a causa mais provável ou a regra aplicável mais adequada.
Múltiplas Hipóteses: Frequentemente, há múltiplas explicações ou qualificações jurídicas possíveis para um mesmo conjunto de fatos. Um raciocínio linear tenderia a "cravar" a primeira hipótese plausível que surge. O raciocínio abdutivo (facilitado por abordagens não-lineares como o ToT) permite gerar e avaliar diversas hipóteses explicativas ou qualificadoras em paralelo, ponderando a força das evidências ou a adequação jurídica de cada uma, antes de selecionar a mais convincente ou provável. Isso é essencial em casos com provas indiciárias ou fatos controvertidos.
A.1.3. Aspectos Filosóficos na Determinação da "Verdade" Jurídica:
Verdade Processual vs. Verdade Factual: O Direito, quanto à reconstrução histórica de fatos, não busca necessariamente a "verdade real" ou factual absoluta, mas sim uma "verdade processual" ou "verdade jurídica probabilística", construída dentro das regras e limites do processo, com base nas provas produzidas e na interpretação das normas.
Ponderação de Princípios e Valores: Casos complexos frequentemente envolvem a ponderação de princípios jurídicos ou valores sociais conflitantes (ex: liberdade de expressão vs. direito à honra; segurança jurídica vs. justiça material). Não há uma fórmula linear para resolver esses conflitos. A decisão envolve analisar as implicações de dar prevalência a um ou outro princípio em diferentes contextos. Uma análise não-linear permite explorar as "consequências" de diferentes ponderações.
Construção da Realidade Jurídica: A "verdade" no Direito é, em parte, uma construção argumentativa e interpretativa. Diferentes juristas, baseados nos mesmos fatos e textos legais, podem chegar a conclusões diversas, mas igualmente "válidas" dentro de determinada linha de raciocínio e interpretação. A não-linearidade reflete essa capacidade de construir e defender diferentes narrativas jurídicas plausíveis, explorando múltiplos caminhos argumentativos que levam a diferentes "verdades" possíveis dentro do sistema.
Em suma, o raciocínio jurídico raramente é uma estrada reta. É mais como navegar por uma rede complexa, onde é preciso explorar diferentes caminhos (interpretações, argumentos, hipóteses), voltar atrás se um caminho se mostra improdutivo (backtracking), avaliar a solidez de cada percurso e, no final, sintetizar a análise dos caminhos mais robustos para construir a solução ou o parecer mais convincente. Técnicas que permitem simular ou auxiliar essa exploração não-linear, como o Tree of Thoughts para LLMs, são valiosas por se alinharem melhor à natureza multifacetada e interpretativa da análise jurídica.
B. Caso de Estudo: Análise Preliminar de Responsabilidade Civil em Acidente de Trânsito usando técnica de prompting Tree of Thougths (ToT).
O Tree of Thoughts (ToT) é uma técnica de prompting avançada que estrutura a inferência de Modelos de Linguagem (LLMs) para explorar MÚLTIPLAS cadeias de raciocínio. Diferente do Chain of Thought linear, o ToT simula uma busca em árvore para soluções mais elaboradas.
Tecnicamente, o ToT organiza o processo de pensamento do modelo em uma estrutura de árvore. Cada "nó" na árvore representa um pensamento – uma sequência coerente de tokens que constitui uma etapa intermediária na resolução do problema. As "ramificações" são as transições entre diferentes pensamentos ou direções de raciocínio.
O core técnico do ToT é permitir que o LLM explore um espaço combinatorial de pensamentos. Em vez de gerar uma única continuação para um prompt, o modelo é guiado a gerar e considerar múltiplas sequências de tokens em paralelo, buscando otimizar a chance de encontrar um caminho que leve a uma solução ótima.
A aplicação do ToT começa com a engenharia do prompt inicial para incitar o modelo a decompor a tarefa em pensamentos intermediários distintos. Cada pensamento deve ser uma unidade de raciocínio manejável que contribui para o objetivo final, tornando-se um potencial nó na árvore.
Cenário: João sofreu um acidente de carro com Maria. João alega que Maria ultrapassou o sinal vermelho. Maria alega que João estava muito acima da velocidade permitida no momento em que ela cruzava o cruzamento no sinal verde, e que ele poderia ter evitado a colisão. Queremos que o LLM analise a situação e identifique os principais pontos de responsabilidade e argumentos prováveis para ambas as partes.
Objetivo do LLM (com ToT): Analisar os fatos apresentados sob a ótica da responsabilidade civil em acidentes de trânsito, considerando as alegações conflitantes, para identificar possíveis cenários de culpa (exclusiva de um, concorrente) e os fundamentos jurídicos aplicáveis, estruturando os argumentos para cada parte.
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Passo 1: Definição do Problema (Prompt Inicial)
- Input do Usuário (Prompt): "Analise o seguinte cenário de acidente de trânsito sob a perspectiva da responsabilidade civil: João alega que Maria ultrapassou o sinal vermelho. Maria alega que João estava em excesso de velocidade. Identifique os elementos de responsabilidade civil aplicáveis, possíveis cenários de culpa (exclusiva, concorrente) e os principais argumentos jurídicos para João e Maria."
- Função no ToT: Define o nó raiz da árvore e a tarefa principal.
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Passo 2: Decomposição Inicial e Geração de Primeiros "Pensamentos"
- Prompt Implícito/Explícito para o LLM: "Dado o cenário acima, quais são os principais aspectos legais da responsabilidade civil que precisam ser analisados? Liste 3 a 4 pontos essenciais."
- Saída do LLM (Primeiros Candidatos a Pensamentos/Nós - Nível 1):
  • Pensamento 1.1: Análise da culpa de Maria (alegação de sinal vermelho).
  • Pensamento 1.2: Análise da culpa de João (alegação de excesso de velocidade).
  • Pensamento 1.3: Análise do nexo causal entre as condutas e o dano.
  • Pensamento 1.4: Análise de possíveis excludentes ou atenuantes (ex: culpa concorrente).
- Função no ToT: O LLM gera os primeiros nós, decompondo o problema em sub-problemas legais.
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Passo 3: Avaliação dos Primeiros "Pensamentos"
- Prompt Implícito/Explícito para o LLM: "Avalie a relevância de cada um destes pontos (1.1 a 1.4) para a análise da responsabilidade civil neste caso específico, considerando as alegações conflitantes. Qual a importância de cada um?"
- Saída do LLM (Avaliação Heurística):
  • Avaliação 1.1: Alta - Determinar quem desrespeitou o sinal é crucial para a culpa.
  • Avaliação 1.2: Alta - Excesso de velocidade é uma infração e pode configurar culpa, influenciando o nexo e concorrência.
  • Avaliação 1.3: Essencial - Sem nexo causal, não há responsabilidade, mesmo com culpa.
  • Avaliação 1.4: Importante - A natureza das alegações sugere forte possibilidade de concorrência de culpas.
- Função no ToT: O LLM avalia a relevância de cada nó gerado. Todos parecem importantes neste caso, então todos são mantidos para expansão.
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Passos 4-7: Expansão da Árvore e Iteração
O LLM continua expandindo a árvore de pensamentos, explorando diferentes cenários de culpa, argumentos jurídicos e necessidades probatórias para cada parte.
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Passo 8: Síntese e Consolidação
O LLM sintetiza as conclusões dos caminhos de raciocínio mais bem avaliados na árvore, apresentando uma análise multifacetada do problema com diferentes cenários de responsabilidade.
Neste exemplo, o ToT permite que o LLM não apenas siga uma única linha de raciocínio (como "Maria furou o sinal, logo ela é culpada"), mas explore simultaneamente a alegação oposta, considere a interação entre as duas condutas (culpa concorrente), analise o nexo causal para cada hipótese e identifique os argumentos e provas relevantes para ambas as partes em diferentes cenários de desfecho probatório. Isso simula uma análise jurídica mais completa e robusta do que um processo linear simples.
C. O Imperativo do Pensamento Crítico frente à IA no Direito
Delegar integralmente à Inteligência Artificial o raciocínio jurídico representa um risco substancial, precisamente porque a natureza multifacetada do Direito exige uma abordagem não-linear que os modelos, mesmo utilizando técnicas avançadas como Tree of Thoughts, podem simular, mas não substituir em sua completude. Ao permitir que a IA "pense" pelo operador do Direito sem o devido escrutínio crítico, corre-se o perigo de aceitar conclusões que parecem tecnicamente fundamentadas, mas que podem ignorar nuances linguísticas, abdutivas e filosóficas imperceptíveis para o modelo, resultando em análises que, embora estruturalmente coerentes, podem carecer da sensibilidade interpretativa e do entendimento contextual profundo que caracterizam o genuíno raciocínio jurídico.
A ausência de pensamento crítico na interface entre o jurista e a IA pode conduzir a uma perigosa automatização do juízo legal, onde as múltiplas possibilidades interpretativas, as tensões entre princípios e a construção dialética de argumentos - elementos essenciais à justiça substantiva - são inadvertidamente sacrificadas em nome da eficiência e da aparente objetividade. O verdadeiro valor das ferramentas de IA no Direito não está em substituir o pensamento jurídico humano, mas em potencializá-lo, oferecendo caminhos para explorar sistematicamente diversas linhas argumentativas que o operador deve então avaliar criticamente, incorporando elementos de justiça, equidade e responsabilidade social que transcendem a mera aplicação técnica de normas.
Em suma, por mais sofisticados que se tornem os LLMs em sua capacidade de simular o pensamento jurídico não-linear, eles permanecem fundamentalmente ferramentas - instrumentos poderosos cujo output deve ser sempre submetido ao crivo do operador humano, que detém não apenas conhecimento técnico, mas sabedoria prática e responsabilidade ética. O caso de estudo apresentado demonstra o potencial da IA para enriquecer a análise jurídica, mas também evidencia que a verdadeira complexidade do Direito, como construção humana voltada para a justiça em sociedades complexas, exige que mantenhamos o pensamento crítico como mediador constante entre as possibilidades tecnológicas e as necessidades humanas que o Direito busca atender.

by Pedro Mourão