Construindo Pontes Digitais: A União da Hermenêutica e da Técnica para a Verdade Processual
A crescente digitalização das interações sociais impõe desafios significativos ao Direito, particularmente no que concerne à produção e valoração da prova digital. Este artigo explora o fenômeno do hibridismo normativo tecnológico-jurídico, caracterizado pela integração de normas técnicas de tecnologia da informação, como as da série ISO/IEC 27000, no arcabouço jurídico, especialmente no Direito Penal e Processual Penal.

by Pedro Mourão

A Era do Hibridismo Normativo Tecnológico-Jurídico
A onipresença da tecnologia da informação redefiniu contornos sociais, econômicos e, inevitavelmente, jurídicos. As relações humanas, mediadas por dispositivos e redes, geram rastros digitais que se convertem em potenciais fontes de prova, demandando do Direito uma adaptação constante de suas estruturas normativas, interpretativas e sancionatórias. Neste cenário de inovação disruptiva, emerge com vigor o fenômeno que denominamos hibridismo normativo tecnológico-jurídico. Este conceito descreve a crescente e complexa integração de normas técnicas – padrões, diretrizes e especificações emanadas de organismos como a ISO (International Organization for Standardization) e a IEC (International Electrotechnical Commission) – ao processo de criação, interpretação e aplicação das normas estritamente jurídicas.
Essa simbiose normativa é particularmente evidente e crítica nas searas do Direito Penal e do Direito Processual Penal. A investigação de crimes cibernéticos, a validade da prova digital e a própria configuração de tipos penais dependem, cada vez mais, do diálogo com padrões técnicos. Normas técnicas são convocadas para preencher lacunas em normas penais em branco, que delegam a definição de elementos cruciais a fontes extralegais, e para estabelecer os critérios de admissibilidade e confiabilidade das evidências digitais, sustentando a própria validade da cadeia de custódia. A ausência de observância a esses padrões pode comprometer irremediavelmente a persecução penal.
Desafios do Hibridismo Normativo
  • Integração de referenciais normativos distintos
  • Interpretação de padrões técnicos no contexto jurídico
  • Impacto na legitimidade das decisões judiciais
Objetivos do Estudo
  • Delimitar conceitos fundamentais
  • Examinar o hibridismo normativo no Direito brasileiro
  • Explorar a hermenêutica das normas técnicas no Direito
  • Ilustrar a aplicação prática através de caso hipotético
Conceitos Fundamentais
Normas Jurídicas em Branco e a Interface Tecnológica
As normas jurídicas em branco, categoria clássica da teoria do direito, são disposições legais cujo preceito (primário ou secundário) não se encontra completamente descrito no próprio texto normativo, requerendo complementação por outra norma jurídica ou ato normativo de hierarquia igual ou inferior. Essa técnica legislativa é frequentemente utilizada em matérias que exigem atualização constante ou que versam sobre conhecimentos técnicos específicos, como saúde pública, meio ambiente e, relevantemente para este estudo, tecnologia.
No Direito Penal, a norma penal em branco é aquela cujo tipo penal necessita ser integrado por outra norma para sua completa definição. Um exemplo paradigmático é o Art. 33 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), que criminaliza diversas condutas relacionadas a "drogas", mas remete à Portaria SVS/MS nº 344/1998 da ANVISA para definir quais substâncias são consideradas ilícitas. Sem essa portaria, o tipo penal seria inaplicável.
Normas Técnicas de Tecnologia da Informação como Fonte Complementar
Normas técnicas são documentos, estabelecidos por consenso e aprovados por organismos reconhecidos (como a ISO, IEC, ABNT, IETF), que fornecem regras, diretrizes ou características para atividades ou seus resultados, visando à obtenção de um grau ótimo de ordem em um dado contexto. Elas buscam padronizar processos, produtos, serviços e terminologias, garantindo interoperabilidade, segurança, qualidade e eficiência.
No campo da tecnologia da informação e comunicação (TIC), a proliferação de normas técnicas é vasta e essencial. Algumas das mais relevantes para o contexto jurídico-probatório incluem a ISO/IEC 27037:2012, que estabelece diretrizes para a identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências digitais, e a ISO/IEC 27042:2015, que fornece diretrizes para a análise e interpretação de evidências digitais.
No domínio digital, essa técnica se manifesta de forma explícita ou implícita. O Art. 154-A do Código Penal, que tipifica a invasão de dispositivo informático, é um exemplo claro. O tipo penal menciona "invadir dispositivo informático de uso alheio" mas não estabelece o que, de fato, constitui na realidade da tecnologia da informação a conduta de "invadir". A expressão é claramente mais próxima de um ambiente físico protegido, passível de ser transpassado, o que não se aplica por falta de sentido teleológico. O tipo exige assim a compreensão da realidade da TI para identificar a conduta mecânica do agente que produza um "acesso ilegítimo", como expressado na Convenção de Budapeste, o que, por si, atrai a necessidade de se entender como se pode ter acesso a um dispositivo informático, reino das normas técnicas.
A Concretização do Hibridismo Normativo no Direito Brasileiro
Complementação Técnica de Tipos Penais Digitais
O crime de invasão de dispositivo informático (Art. 154-A do CP) exemplifica a dependência do Direito Penal em relação a conceitos técnicos. A caracterização do acesso ilegítimo depende do entendimento das normas técnicas. A definição se o acesso foi "não autorizado", ou seja, ilegítimo, também pode depender de políticas de segurança, termos de uso e configurações específicas do sistema, cujo entendimento demanda conhecimento técnico.
Regulamentação da Cadeia de Custódia Digital via Normas ISO
O campo probatório é onde o hibridismo normativo se manifesta de forma mais intensa e com consequências mais diretas. A Lei nº 13.964/2019 ("Pacote Anticrime") introduziu no Código de Processo Penal (CPP) artigos específicos sobre a cadeia de custódia (Arts. 158-A a 158-F), definindo-a como o conjunto de procedimentos para manter e documentar a história cronológica do vestígio.
Impacto na Fundamentação das Decisões Judiciais
A crescente relevância das normas técnicas reflete-se diretamente na jurisprudência. Decisões judiciais que analisam a admissibilidade de provas digitais frequentemente invocam, explícita ou implicitamente, a necessidade de observância a padrões técnicos reconhecidos para garantir a integridade e a autenticidade dos dados.
É nesse vácuo que normas técnicas como a ISO/IEC 27037:2012 se tornam cruciais. A norma detalha procedimentos específicos para cada fase da cadeia de custódia aplicada a evidências digitais: identificação, coleta, aquisição e preservação. Embora a ISO NBR ABNT 27037:2013 não seja lei no Brasil, sua adoção (ou a de procedimentos equivalentes) tornou-se um padrão de fato, frequentemente exigido por peritos e tribunais para atestar a confiabilidade da prova digital.
"Na esteira das preocupações com a garantia da autenticidade dos novos meios de prova, a Associação Brasileira de Normas Técnicas, desde o ano de 2013, estabelece na NBR ISO/IEC 27037:2013 diretrizes acerca do manuseio inicial de evidências digitais, o que compreende a sua identifi cação, coleta, aquisição e preservação." - Min. Joel Ilan Paciornik, AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS N. 828.054-RN
A Hermenêutica da Norma Técnica no Contexto Jurídico-Probatório
A mera transposição de normas técnicas para o universo jurídico, porém, é insuficiente e potencialmente problemática. Normas como a ISO/IEC 27037 e 27042, embora essenciais, foram concebidas primariamente sob a ótica da eficiência técnica, da padronização e da interoperabilidade. O Direito, por sua vez, opera sob um paradigma distinto, guiado por princípios fundamentais como a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência e a busca da verdade real (mitigada pelas garantias processuais).

Hermenêutica Adaptativa
Interpretação contextualizada das normas técnicas
Garantias Processuais
Ampla defesa, contraditório, presunção de inocência
Eficiência Técnica
Padronização, interoperabilidade, confiabilidade
Ao ingressarem no processo judicial, as normas técnicas passam a ser objeto de hermenêutica jurídica. Sua aplicação literal pode, em determinados casos, colidir com garantias fundamentais. A eficiência na coleta de dados, por exemplo, não pode se sobrepor ao direito à privacidade ou à inviolabilidade de comunicações, salvo mediante ordem judicial fundamentada e nos estritos limites legais. A busca pela integridade absoluta da evidência (um objetivo técnico) deve ser ponderada com o direito à não autoincriminação e à paridade de armas no processo.
O intérprete jurídico (juiz, promotor, advogado, delegado) deve, portanto, realizar uma leitura da norma técnica que vá além de sua literalidade, questionando sua aplicabilidade e seus limites no caso concreto à luz dos valores e princípios do ordenamento jurídico. Trata-se de uma adaptação finalística: a norma técnica é utilizada como ferramenta para alcançar os objetivos do processo (a busca da verdade e a aplicação justa da lei), mas sempre subordinada às garantias constitucionais.
Estudo de Caso Hipotético: A Hermenêutica Aplicada às Normas ISO 27037 e 27042
O Cenário: Investigação de Fraude Digital Corporativa
Uma empresa multinacional detecta um desvio financeiro significativo, suspeitando que um diretor financeiro utilizou seu acesso privilegiado aos sistemas corporativos para realizar transferências fraudulentas para contas pessoais no exterior, apagando posteriormente os logs de suas ações. A empresa aciona as autoridades policiais, que obtêm mandado de busca e apreensão para os dispositivos eletrônicos do diretor (notebook, smartphone corporativo, tablet pessoal) e para acesso aos servidores da empresa.
O Desafio Probatório e a Norma ISO/IEC 27037
A equipe policial (Digital Evidence First Responders - DEFRs) chega ao local para cumprir o mandado. O notebook do diretor está ligado e conectado à rede da empresa. A ISO/IEC 27037:2012 apresenta um dilema: desligar abruptamente o dispositivo para preservar dados não voláteis ou realizar coleta live para capturar dados voláteis cruciais como chaves de criptografia e conexões de rede.
A Análise Forense e a Norma ISO/IEC 27042
As imagens forenses e os dados coletados são enviados ao laboratório para análise por um Digital Evidence Specialist (DES). A ISO/IEC 27042:2015 guia esta fase, enfatizando a necessidade de processos de análise validados, documentados e realizados por pessoal competente.
A Interpretação Judicial Necessária
O laudo pericial, baseado nos procedimentos da ISO 27037 e na análise/interpretação da ISO 27042, será submetido ao contraditório. A defesa poderá questionar a escolha do método de coleta, a validação das ferramentas de análise, ou a interpretação dos achados.
Neste caso, a hermenêutica jurídica, considerando a gravidade da fraude e a potencial relevância dos dados voláteis, provavelmente inclinaria a balança para a realização da coleta live de RAM e outros dados voláteis com ferramentas forenses confiáveis, seguida por um desligamento controlado, documentando cada passo e justificando a escolha em face da potencial perda de provas cruciais. A aplicação da norma técnica é adaptada à finalidade do processo penal.
A Interpretatibilidade das Normas Técnicas: Linguagem e Ambiguidade
A Visão Idealista da Não Interpretabilidade Técnica
Não raro se ouve que normas técnicas, ao contrário das normas jurídicas, não são (ou não deveriam ser) interpretáveis. O argumento central reside em duas características principais:
  1. Vocabulário Controlado: Normas técnicas frequentemente se baseiam em léxicos padronizados, como a própria ISO/IEC 2382 ("Information technology — Vocabulary").
  1. Ausência de Polissemia Intencional: Diferente do Direito, que muitas vezes utiliza termos abertos e polissêmicos, as normas técnicas visam à precisão e objetividade.
A Realidade da Interpretação: Polissemia e Ambiguidade
Apesar do esforço louvável de padronização e controle de vocabulário, a aplicação das normas ISO/IEC 27037 e 27042 no mundo real, especialmente no contexto jurídico-probatório, revela que a interpretação é não apenas possível, mas inevitável. Isso ocorre porque, mesmo com vocabulário controlado, a linguagem natural utilizada e a complexidade das situações enfrentadas geram ambiguidades e exigem contextualização.
Exemplos concretos incluem termos como "cuidado razoável", "competência" e "justificabilidade" na ISO/IEC 27037, e conceitos como "relevância" e "interpretação" na ISO/IEC 27042, que são inerentemente abertos e dependentes do contexto.
Em última análise, a visão da não interpretabilidade das normas técnicas falha por desconsiderar um aspecto fundamental: tudo é linguagem. Normas técnicas, mesmo as mais rigorosas e com vocabulário controlado como as da ISO/IEC, são escritas em linguagem natural (inglês, português etc.), não em linguagem lógico-computacional formalmente inequívoca. A linguagem natural é inerentemente polissêmica e dependente de contexto.
Termos como "razoável", "suficiente", "competente", "relevante", "interpretação", "integridade", "preservação" permeiam as normas ISO/IEC 27037 e 27042. Mesmo termos técnicos definidos na ISO/IEC 2382, como "access" ou "data", podem adquirir novas camadas de significado ou exigir desambiguação quando aplicados em um contexto específico, especialmente o jurídico, que possui seus próprios princípios e finalidades.
Tendências e Perspectivas Futuras
Complexificação Tecnológica
Tecnologias como IA, Blockchain, Computação em Nuvem e IoT introduzem novos desafios para coleta e análise de evidências
Competência Híbrida
Operadores do Direito precisarão desenvolver conhecimentos técnicos para lidar com disputas sobre aplicação de normas técnicas
Integração Normativa
Possível incorporação formal de normas técnicas ao ordenamento jurídico através de remissões legislativas
Hermenêutica Adaptativa
Desenvolvimento de metodologias para interpretação contextualizada de normas técnicas no âmbito jurídico
O hibridismo normativo tecnológico-jurídico não é uma tendência futura, mas uma realidade consolidada e em expansão no Direito contemporâneo, especialmente no âmbito probatório digital. A integração de normas técnicas, como as diretrizes da ISO/IEC para manuseio (ISO 27037) e análise (ISO 27042) de evidências digitais, tornou-se condição sine qua non para a efetividade da persecução penal e a garantia da confiabilidade das provas que fundamentam as decisões judiciais.
Contudo, este estudo demonstrou que a incorporação desses padrões técnicos não pode ser automática ou acrítica. A norma técnica, ao adentrar o domínio jurídico, sujeita-se a um processo de hermenêutica que a recontextualiza e a subordina aos princípios e valores fundamentais do ordenamento. A busca pela eficiência e padronização técnica deve ser constantemente balanceada com as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e da dignidade humana.
O futuro aponta para uma complexificação ainda maior, com novas tecnologias demandando novos padrões e uma crescente judicialização da técnica. Isso reforça a necessidade urgente de desenvolver uma competência híbrida nos profissionais do Direito e da perícia, capacitando-os não apenas a entender e aplicar as normas técnicas, mas, sobretudo, a interpretá-las criticamente dentro da moldura principiológica do sistema jurídico. Somente através dessa integração consciente e hermeneuticamente orientada será possível garantir que a tecnologia sirva à justiça, e não o contrário.