A extraterritorialidade Digital do artigo 11 do MCI foi questionada?
Em 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Brasil proferiu uma decisão inédita permitindo a remoção global de conteúdo considerado ilícito segundo a lei brasileira (REsp 2147711). Pouco depois, em 2025, uma corte federal nos Estados Unidos (caso Trump Media & Technology Group/Rumble Inc. vs. Alexandre de Moraes) negou eficácia a ordens judiciais brasileiras que exigiam remoção de conteúdo, fundamentando-se na inobservância de tratados internacionais como o MLAT e princípios de soberania. Esse aparente choque de entendimentos ilustra a contradição entre jurisdicionamentos: de um lado, a justiça brasileira afirmando jurisdição extraterritorial sobre plataformas globais; de outro, a justiça norte-americana recusando cumprir tais ordens por falta de formalidades e conflitos legais. A seguir, analisaremos essa contradição sob quatro perspectivas: (1) Aspectos Jurídicos, (2) Aspectos Econômicos, (3) Tratados e Convenções Aplicáveis, e (4) Implicações para Relações Internacionais e Soberania, embasando-nos em fontes jurídicas, acadêmicas e precedentes internacionais.

by Pedro Mourão

Aspectos Jurídicos
Fundamentação do STJ: extraterritorialidade e Marco Civil da Internet
A decisão do STJ (Terceira Turma, REsp 2147711, rel. Min. Nancy Andrighi) estabeleceu que ordens judiciais brasileiras podem ter alcance global na Internet. No caso, uma empresa brasileira alegou ter sido difamada por um vídeo no YouTube; embora o conteúdo tenha sido removido na versão brasileira da plataforma, permaneceu acessível em outros países. Para garantir proteção efetiva à vítima, o STJ determinou a remoção mundial do vídeo. A Corte baseou-se no Artigo 11 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que aplica a lei brasileira a operações de coleta, armazenamento e tratamento de dados ocorridas no Brasil, mesmo que o provedor esteja sediado no exterior. Em outras palavras, se qualquer ato de processamento de dados ocorrer em território nacional, a lei brasileira pode ser aplicada, o que embasa a jurisdição brasileira sobre plataformas globais. A Ministra relatora ressaltou o caráter transnacional da internet e argumentou que limitar a ordem apenas ao Brasil tornaria a tutela inócua, pois o conteúdo poderia ser acessado via outros domínios ou países.
O STJ também abordou a questão da soberania. A decisão afirma expressamente que não há violação à soberania de outros países quando a justiça brasileira determina, em matéria civil, a indisponibilidade global de conteúdo ilícito segundo o direito brasileiro. A lógica é que, ausente conflito explícito com a lei estrangeira, a ordem brasileira pode estender-se globalmente para remover o ilícito – privilegiando a proteção da vítima e a efetividade da decisão. A relatora citou, inclusive, diretrizes internacionais das Nações Unidas que preconizam concentrar a responsabilização em um único foro ("regra de singularidade"), evitando múltiplas punições ou decisões contraditórias pelo mesmo conteúdo. Essa referência diz respeito a orientações do Relator Especial da ONU para Liberdade de Expressão, que recomenda concentrar litígios em um número reduzido de jurisdições como boa prática, de modo a evitar dupla penalização pelo mesmo fato em países diferentes. Em síntese, a posição do STJ foi: "uma plataforma, uma decisão judicial", isto é, o Judiciário brasileiro, ao reconhecer a ilicitude de um conteúdo, pode compelir a plataforma a removê-lo globalmente, sem que isso viole automaticamente o princípio da territorialidade ou a soberania de outras nações.
Argumentação da decisão americana (Rumble vs. Moraes) e tratados internacionais
Em contraste marcante, a decisão do Tribunal Distrital Federal na Flórida (Caso nº 8:25-cv-00411-MSS-AAS, fev/2025) negou eficácia às ordens brasileiras emitidas pelo Ministro Alexandre de Moraes (STF) contra as empresas Rumble Inc. e Trump Media & Technology Group. Essas ordens brasileiras – que teriam determinado bloqueio ou remoção de conteúdo nas plataformas Rumble (serviço de vídeos) e Truth Social (rede social ligada ao grupo de Trump) – foram consideradas inaplicáveis nos EUA pelo juiz americano, principalmente por questões procedimentais e de soberania.
A corte dos EUA enfatizou que as notificações e determinações brasileiras não foram devidamente formalizadas via os mecanismos internacionais apropriados. Nem a Convenção da Haia sobre citação de atos judiciais (Hague Service Convention), da qual Brasil e EUA são signatários, foi utilizada para notificar as empresas, nem foi acionado o Tratado de Assistência Jurídica Mútua (MLAT) vigente entre Brasil e EUA. Ou seja, do ponto de vista norte-americano, as ordens estrangeiras não ingressaram no território jurídico dos EUA por nenhum canal legal reconhecido – não houve "domesticação" ou homologação dessas ordens por autoridade competente nos EUA.
Assim, sob a lei dos EUA, as empresas não têm obrigação de cumprir determinações de um juiz brasileiro que não tenham sido validadas através dos procedimentos de cooperação internacional. A decisão ressalta ainda que nenhuma autoridade (nem brasileira, nem norte-americana) tentou fazer cumprir essas ordens formalmente nos EUA, de modo que não se identificou, naquele momento, risco iminente que justificasse a concessão de medida liminar (TRO). Em suma, a justiça americana adotou a posição clássica de que ordens judiciais estrangeiras não produzem automaticamente efeitos em seu território, especialmente quando faltam procedimentos do direito internacional (como tratados ou cartas rogatórias) e quando potencialmente conflitam com princípios locais (no caso dos EUA, possivelmente a liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda, embora a decisão tenha se baseado estritamente em questões procedimentais de notificação e soberania).
Essa argumentação americana realça a necessidade de conformidade com tratados internacionais para que uma decisão brasileira tenha validade fora do Brasil. O MLAT Brasil-EUA, por exemplo, prevê cooperação em matéria penal; se as ordens de Moraes decorrem de investigação criminal (como inquéritos sobre desinformação ou atos antidemocráticos), a via correta seria o governo brasileiro acionar o Departamento de Justiça dos EUA via MLAT, para que então uma corte americana analise e eventualmente ordene às empresas a cumprir a solicitação, respeitando as leis dos EUA. Nada disso foi feito, como notou o juiz. Desse modo, a mensagem da decisão dos EUA é clara: sem respeito aos procedimentos de assistência mútua e à jurisdição doméstica, as ordens estrangeiras não obrigam sujeitos nos EUA. Trata-se de uma defesa da soberania americana e do devido processo internacional frente à tentativa de aplicar diretamente uma ordem judicial brasileira contra empresas sediadas nos EUA.
Direito Internacional: alcance transnacional de decisões judiciais
No plano do Direito Internacional, essa divergência reflete tensões conhecidas entre jurisdição nacional e limites territoriais. Em princípio, pelo direito internacional público clássico, cada Estado exerce soberania sobre seu território e não pode impor suas leis diretamente além dele, salvo consentimento de outro Estado. Existe, porém, a noção de jurisdição extraterritorial condicionada: um país pode aplicar sua lei a fatos ou entidades estrangeiras quando houver um nexo de conexão significativo – por exemplo, atos praticados parcialmente em seu território ou que produzam efeitos nele (princípio dos efeitos). O Brasil, via Marco Civil da Internet, adotou justamente essa lógica do nexo: se dados são tratados no Brasil ou se um serviço de internet atua no país, então a lei brasileira incide. Com base nisso, tribunais brasileiros se sentem competentes para julgar conteúdos online que afetem brasileiros, ainda que hospedados no exterior. Esse é o aspecto da jurisdição de prescrição (prescriptive jurisdiction) – o poder de aplicar a lei a certos fatos.
Entretanto, a jurisdição de execução é diferente. Mesmo que um país tenha o direito de julgar e proferir uma ordem, fazer cumprir essa ordem fora de suas fronteiras depende da cooperação de outros Estados. Em geral, decisões judiciais de um país só produzem efeitos diretos dentro do seu território. Para terem eficácia no exterior, devem ser reconhecidas via mecanismos legais (homologação de sentença estrangeira, tratados, cartas rogatórias). No caso em análise, o Brasil pôde validamente afirmar jurisdição sobre o Google/Youtube no caso de difamação, exigindo a remoção global através de sua subsidiária local (Google Brasil) – ou seja, usando a presença doméstica da empresa para alcançar o conteúdo no exterior. Isso contornou parcialmente a necessidade de atuar fisicamente fora do território (a ordem foi dirigida à filial brasileira do Google, que por sua vez teria acesso ao sistema global do YouTube).
Do ponto de vista brasileiro, não se trataria de "enforcement" em solo estrangeiro, mas sim de exigir que a empresa sujeita às leis brasileiras atue para cumprir a decisão, onde quer que estejam os dados. Já do ponto de vista dos EUA (no caso Rumble), as empresas envolvidas são americanas sem presença legal no Brasil (Rumble e Truth Social não têm filiais brasileiras conhecidas), de forma que a execução exigiria medidas nos EUA – o que esbarra na soberania americana se não houver intermédio legal apropriado.
O Direito Internacional público e o Direito Internacional Privado reconhecem a importância da comidade internacional (comity) e do respeito mútuo entre jurisdições. Em temas de internet, não há ainda um tratado global definindo limites claros, então os países atuam conforme seus princípios gerais. A decisão do STJ se apoia em parte na ideia de universalidade da proteção: argumenta que, se o conteúdo é ilícito aqui e fere direitos, removê-lo globalmente atende ao interesse público e não necessariamente afronta outros países – a não ser que haja conflito explícito de leis. Já a visão americana reforça a territorialidade e a soberania: nenhuma ordem estrangeira vale sem passar pelo crivo local, até para se verificar se conflita com direitos fundamentais domésticos.
Importante notar que o STJ, ao dizer que não há ofensa automática à soberania estrangeira, condicionou sua posição à inexistência de prova de conflito com a lei de outro país. Ou seja, no caso analisado (difamação empresarial), presumiu-se que outros ordenamentos também reprovariam tal conduta ou pelo menos não teriam uma política pública contrária à remoção do conteúdo. Contudo, essa suposição poderia não valer em outros contextos – por exemplo, conteúdo considerado ilegal no Brasil poderia ser protegido pela liberdade de expressão nos EUA (como críticas políticas). Nesse ponto, o direito internacional indicaria que o país estrangeiro não estaria obrigado a seguir a decisão brasileira. Em suma, a validade transnacional de decisões judiciais hoje é regida principalmente por princípios de cortesia internacional e tratados específicos, mas sem uma regra universal: cada caso dependerá da conexão com o território, da existência de acordos bilaterais/multilaterais e do conteúdo da ordem (se fere ou não valores essenciais do outro país).
Casos similares em outras jurisdições
A controvérsia entre alcance global vs. soberania não é exclusiva do Brasil-EUA; outros países vêm enfrentando questões semelhantes, com soluções variáveis:
União Europeia (UE)
A UE tem exemplos nos dois sentidos. Em 2019, a Corte de Justiça da UE, no caso Eva Glawischnig-Piesczek vs. Facebook (C-18/18), decidiu que as leis europeias não impedem que um tribunal nacional ordene a remoção global de conteúdo ilícito (no caso, difamação) ou de equivalentes desse conteúdo. Ou seja, desde que a ordem seja bem delineada, a plataforma pode ser compelida a remover mundialmente aquele material ofensivo. Por outro lado, também em 2019, no caso Google vs. CNIL (C-507/17, sobre "direito ao esquecimento"), o mesmo tribunal europeu entendeu que a obrigação de desindexar links pertinentes a dados pessoais valia apenas no âmbito da UE, não alcançando domínios fora da Europa. Esse caso envolvia a autoridade francesa (CNIL) que queria que o Google removesse resultados globalmente, mas a Corte limitou à UE, citando respeito a outros países onde poderia haver direito de acesso à informação. Em suma, na UE há abertura para ordens globais em matéria de conteúdo ilícito como difamação ou discurso de ódio (desde que não conflitem com leis de outros países), enquanto em matéria de privacidade/dados pessoais prevaleceu uma abordagem mais territorial/regional.
Canadá
O caso paradigmático é Google v. Equustek (Suprema Corte do Canadá, 2017). A Corte canadense manteve uma injunção obrigando o Google a desindexar globalmente certos sites envolvidos em violação de propriedade intelectual (venda de produtos contrafeitos). A justificativa foi semelhante à do STJ brasileiro: uma remoção apenas na versão canadense do Google (google.ca) era insuficiente, pois usuários poderiam acessar os resultados pelo Google.com ou outros domínios, frustrando a eficácia da medida. Os tribunais canadenses consideraram que a ordem global não violava a soberania dos EUA de forma concreta, rotulando essa preocupação como "teórica", já que a ordem visava a subsidiária canadense do Google e buscava proteger direitos violados na internet transnacional.
Porém, esse caso gerou um contra-exemplo nos EUA: a Google recorreu a um tribunal da Califórnia, que em 2017/2018 emitiu uma decisão declarando a ordem canadense inexigível nos EUA, por entendê-la contrária à política pública americana (potencial violação de liberdade de expressão e da seção 230 do CDA). Os juízes canadenses, posteriormente, não se abalaram com a decisão americana, notando que ela apenas impediria a execução da sentença canadense em solo norte-americano, mas não impedia o efeito em outras jurisdições. Ou seja, o caso Equustek gerou dois precedentes opostos: um país impondo alcance global, e outro recusando-o – dinâmica muito parecida com o que vemos entre Brasil e EUA agora.
Índia
A Índia tem seguido caminho semelhante ao do Brasil e Canadá em casos de conteúdo ilícito online. Um importante precedente é Swami Ramdev v. Facebook (Alta Corte de Délhi, 2019). Nesse caso, o tribunal indiano ordenou que Facebook, Google (YouTube) e Twitter removessem mundialmente vídeos difamatórios contra Baba Ramdev, um guru local, que haviam sido postados a partir de um endereço IP na Índia. As plataformas já tinham bloqueado o conteúdo nas versões indianas, mas se recusavam a remover globalmente. Elas argumentaram, assim como o Google no caso brasileiro, que difamação é vista de forma diferente em cada país e que impor a visão indiana globalmente feriria a soberania de outras nações e a comidade internacional. Alegaram ainda que a jurisdição extra-territorial prevista na lei indiana de TI (Sec. 75 do IT Act) se limitava a certos crimes e não alcançaria difamação, propondo que o geo-blocking (bloqueio por país) seria a solução proporcional.
A Alta Corte de Délhi discordou: entendeu que, se o upload inicial partiu da Índia e o conteúdo se dissemina globalmente, a remoção deve ser global para ser eficaz. Fundamentou sua ordem na interpretação da legislação de internet local e no fato de que a causa raiz (upload) ocorreu dentro do território. Essa decisão foi considerada arrojada e está pendente de confirmação final (foi objeto de apelação), mas marca uma tendência da justiça indiana de não se satisfazer com bloqueios regionais quando usuários indianos conseguem contornar as restrições via servidores internacionais.
Em resumo, outras jurisdições importantes apresentam experiências diversas inclinando-se a permitir ordens de remoção com efeito global para garantir direitos (propriedade intelectual, honra, proteção contra fraude), enquanto tribunais dos EUA (e mesmo decisões européias em contexto de proteção de dados) defendendo limites territoriais em respeito à soberania e diferenças legais. Essa comparação evidencia que não há consenso internacional: pelo contrário, há um embate jurídico global entre a necessidade de eficácia das decisões na era digital – "internet sem fronteiras" – e o respeito às fronteiras jurídicas de cada país.
Aspectos Econômicos
Impacto para empresas de tecnologia globais diante de decisões conflitantes
A contradição entre a ordem do STJ e a resposta da Justiça dos EUA coloca as empresas de tecnologia em posição delicada. Plataformas que operam globalmente – Google/YouTube, Meta (Facebook/Instagram), Twitter/X, Rumble, etc. – podem se ver diante de obrigações conflitantes: um país ordena remover ou bloquear certo conteúdo globalmente, enquanto outro país permite ou até protege esse mesmo conteúdo. No caso brasileiro, o STJ deixou claro que espera que um provedor como o Google cumpra ordens judiciais brasileiras até com alcance fora do país. Já o tribunal americano efetivamente disse à Rumble/Trump Media que ignorar as ordens brasileiras não traz consequência legal nos EUA, pois elas não têm força lá.
Para as empresas, isso significa lidar com um dilema operacional e jurídico:
  • Se seguirem a determinação brasileira e removerem conteúdo mundialmente, podem enfrentar críticas ou até ações legais em outras jurisdições. Por exemplo, remover conteúdo acessível a usuários nos EUA por exigência do Brasil pode entrar em choque com princípios de liberdade de expressão ou com contratos com usuários. Mesmo que não haja punição legal direta nos EUA por remover conteúdo, a plataforma pode perder credibilidade com os usuários quanto à neutralidade ou enfrentar questionamentos políticos (especialmente se o conteúdo for de interesse público ou político nos EUA).
  • Se não seguirem a ordem brasileira e limitarem a remoção ao Brasil (geo-blocking), podem sofrer sanções no Brasil: multas pesadas, suspensão de serviços ou bloqueio do acesso à plataforma em território brasileiro. Empresas já vivenciaram isso – p.ex., o Telegram foi bloqueado no Brasil temporariamente em 2022/2023 por não cumprir ordens judiciais do Ministro Moraes, e o próprio YouTube/Google sofreu ameaça de bloqueio ou multa elevada em casos semelhantes. Para empresas com mercado e investimentos no Brasil, o custo de ser banido do país ou multado pode ser significativo.
Esse ambiente de insegurança jurídica pressiona as estratégias de negócio e investimento das empresas:
  • Custos de conformidade aumentam, pois as plataformas precisam monitorar e restringir conteúdo de formas diferentes conforme cada jurisdição. Manter uma infraestrutura de geo-blocking e desenvolver ferramentas para aplicar ordens país-a-país (ou globalmente) demanda recursos técnicos e jurídicos. Plataformas grandes conseguem, mas para empresas menores isso pode ser inviável, levando talvez a excluir totalmente certos tipos de conteúdo mundialmente para evitar riscos ("over-removal").
  • Empresas podem se tornar cautelosas ao expandir para países onde há tendência a ordens de remoção abrangentes. O risco regulatório entra na conta: se o Brasil, por exemplo, passar a exigir rotineiramente compliance global sob pena de bloqueio, uma empresa menor pode preferir não entrar ou investir menos no mercado brasileiro, temendo ficar refém de decisões extraterritoriais. Por outro lado, empresas estabelecidas podem considerar localizar dados/operações para argumentar que cumprem a lei local sem afetar o resto do mundo – embora, no caso do Marco Civil, isso reforça ainda mais a jurisdição brasileira sobre elas.
  • Pode ocorrer uma fragmentação de serviços: empresas criando versões nacionais separadas (com databases separados) para isolar o alcance de ordens. Por exemplo, uma rede social poderia tentar segmentar usuários brasileiros em uma instância separada para limitar ordens brasileiras só àquela instância. Isso, porém, fere o modelo global da internet e traz ineficiências, além de possivelmente frustrar usuários brasileiros que teriam conteúdo mais limitado que o resto do mundo.
No curto prazo, plataformas costumam adotar a solução intermediária de geo-bloqueio: bloqueiam o acesso a conteúdo ilegal apenas no país requisitante. Essa prática, recomendada por princípios de organizações civis, satisfaz parcialmente as autoridades locais e evita afetar usuários globais. O problema – como notado pelo STJ e outros tribunais – é que o geo-blocking pode ser facilmente contornado (uso de VPN, acesso por domínios internacionais). Assim, a eficácia local é limitada, mantendo a pressão por soluções mais drásticas (globais).
Para empresas, navegar essas águas requer também ação política e jurídica:
  • Lobbying e advocacy: As big tech frequentemente engajam governos e organismos internacionais, buscando regras claras. Elas podem pressionar por acordos internacionais que harmonizem expectativas (por ex., um acordo que estabeleça que ordens de remoção fiquem restritas ao território do requerente, exceto em casos gravíssimos consensuais). Organizações como a Internet & Jurisdiction e associações do setor trabalham nesse sentido.
  • Litígios estratégicos: Empresas recorrem ao Judiciário para contestar ordens expansivas. O Google recorreu dentro do Brasil (no caso do STJ) tentando evitar o precedente de remoção global – e perdeu. Rumble/Trump Media recorreu nos EUA para se proteger de possíveis medidas brasileiras – e conseguiu ao menos uma declaração judicial de que não precisam obedecer. Esses litígios definem limites e dão respaldo legal para as empresas tomarem posição.
  • Políticas internas globais: As plataformas tentam desenvolver padrões comunitários e mecanismos próprios que atendam preocupações legítimas (como remover discurso de ódio, desinformação perigosa, difamação mediante decisões internas ou de conselhos independentes). Se forem eficazes, essas medidas podem reduzir a necessidade de intervenção judicial. Porém, muitas vezes as autoridades acham insuficientes e seguem emitindo ordens.
Do ponto de vista dos investimentos e operações nos países envolvidos, decisões conflitantes podem trazer consequências:
  • Para o Brasil, insistir em aplicação extraterritorial irrestrita pode gerar uma percepção externa de risco regulatório. Caso empresas achem que o Brasil impõe obrigações custosas globalmente, isso pode refletir em prêmios de risco ou cautela de investidores estrangeiros em empresas de internet no Brasil. Por outro lado, o Brasil pode argumentar que está na vanguarda da proteção de direitos online, o que poderia atrair empresas comprometidas com compliance robusto.
  • Para os EUA, a postura de não reconhecer ordens estrangeiras sem passar pelos filtros internos reforça a confiança de empresas domésticas de que contarão com proteção legal contra ingerências externas. Isso pode ser visto positivamente por investidores em plataformas americanas (sabendo que seus produtos/dados não serão alterados por decisões arbitrárias de fora sem devido processo). No entanto, se a tensão aumentar, pode criar atritos que afetem empresas americanas operando em mercados como o brasileiro (por ex., retaliações ou ambiente menos acolhedor).
Big Techs entre soberania nacional e padrões regulatórios internacionais
As Big Techs – Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft, e também empresas emergentes como Rumble – são atores-chave na governança da internet de facto. Elas frequentemente se tornam mediadoras informais entre diferentes regimes jurídicos, dado que operam simultaneamente sob diversas leis nacionais. O papel que desempenham nesse embate envolve:
  • Autorregulação e Padrões Globais: Muitas big techs tentam instaurar políticas uniformes no mundo todo (ex: proibição de certos conteúdos, transparência de moderação) inspiradas em valores internacionais de direitos humanos, para criar uma espécie de "padrão mínimo" que atenda a maioria dos países. Por exemplo, o Facebook alega seguir os Padrões da Comunidade globalmente e conta com um Conselho de Supervisão independente para revisar decisões de conteúdo. Essas iniciativas podem prevenir alguns conflitos, mostrando aos governos que a empresa leva a sério problemas como discurso de ódio ou fake news. Contudo, isso nem sempre satisfaz expectativas legais locais – o padrão da empresa pode ser mais brando que a lei de certos países (como no caso de difamação, em que o Brasil e a Europa têm leis mais rigorosas que os EUA).
  • Adaptação local: Onde as diferenças são grandes, as plataformas adotam adaptações regionais. Ex: o Google remove resultados de busca relacionados a right to be forgotten na UE, mas não fora. O Twitter/X pode marcar conteúdo de desinformação eleitoral nos EUA conforme as regras americanas, enquanto no Brasil atenderia a ordens do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) removendo aquele conteúdo. As big techs acabam tendo que modular o serviço país a país em certos aspectos – o que contraria a visão de "internet única", mas é a realidade para cumprir leis.
  • Pressão e negociação: Essas empresas também exercem pressão diplomática indireta. Quando enfrentam uma ordem global que consideram indevida, podem buscar apoio do governo do seu país de origem. No caso Rumble/Trump Media, há claramente uma conotação política: o envolvimento da Trump Media (ligada ao ex-presidente dos EUA) deu visibilidade doméstica ao caso, possivelmente sinalizando ao governo americano e ao público que uma autoridade estrangeira (Min. Moraes) estaria censurando conteúdo em plataformas americanas. Isso pode gerar reações políticas nos EUA em defesa das empresas e contra o que percebem como censura estrangeira. Do lado brasileiro, empresas podem argumentar junto a autoridades que certas exigências são impossíveis de cumprir plenamente sem violar outras leis, tentando negociar soluções (prazos maiores, limitar a ordem territorialmente, etc.).
  • Risco de "splinternet" vs. interoperabilidade global: As big techs preferem evitar uma fragmentação completa da internet (o chamado splinternet). Se cada país isolar seu segmento da rede com regras totalmente díspares, as empresas perderão economias de escala e os usuários perderão acesso universal a informações.
Assim, gigantes de tecnologia têm interesse em harmonização regulatória. Elas participam de fóruns internacionais, apoiam padrões comuns (por exemplo, aderindo ao Código de Conduta da UE para discurso de ódio, mas também tentando exportar certas práticas para outros lugares). Contudo, quando confrontadas com ordens irreconciliáveis, podem ser forçadas a escolher um lado. Nesses casos extremos, as big techs tendem a priorizar o cumprimento da lei do país onde estão sediadas ou onde as consequências são mais graves. Por exemplo, se cumprir a ordem brasileira implicasse violar claramente a lei americana e arriscar pesadas ações judiciais nos EUA, a empresa provavelmente resistiria e encararia as sanções brasileiras (a menos que o mercado brasileiro seja absolutamente crucial para seu negócio). Inversamente, se a não remoção global levar à perda de todo o mercado brasileiro (como bloqueio total da plataforma), a empresa teria que avaliar o peso desse mercado versus o precedente perigoso que criaria globalmente ao ceder. Essas decisões têm impactos econômicos e de reputação enormes.
Em suma, sob a ótica econômica, os conflitos jurisdicionais forçam as empresas globais de tecnologia a balancear custos e riscos legais de cada lado. Há um incentivo para buscarem soluções cooperativas – por exemplo, desenvolver ferramentas que permitam a um país esconder conteúdo para seus cidadãos de forma quase inviolável (tornando desnecessária a remoção global), ou colaborar com autoridades estrangeiras através de equipes internas especializadas para evitar imposições judiciais. No entanto, enquanto não houver alinhamento jurídico internacional, as big techs permanecerão atuando como árbitros pragmáticos, caso a caso, entre a soberania nacional de um país e as obrigações (ou liberdades) garantidas em outro. Isso tem reflexos diretos em seus modelos de negócios, investimentos e na experiência dos usuários nas diferentes partes do mundo.
Tratados e Convenções Aplicáveis
Tratados internacionais relevantes (MLAT, Haia e outros)
No vácuo de uma legislação internacional específica para a internet, os casos concreto acabam recorrendo a tratados gerais de cooperação jurídica. Dois instrumentos foram centrais na decisão americana e são relevantes aqui: a Convenção da Haia de 1965, sobre citação e intimação no exterior, e o Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT) entre Brasil e EUA (de 2001, para assistência mútua em matéria penal).
Hague Service Convention (Convenção da Haia): Facilita a comunicação de atos processuais entre países signatários. Brasil e EUA são parte. Isso significa que uma ordem judicial brasileira destinada a uma parte nos EUA (como Rumble ou Trump Media) deveria ser remetida via Autoridade Central prevista na Convenção para ser entregue formalmente nos EUA. No caso Rumble, o juiz notou que os documentos brasileiros não foram entregues conforme a Convenção da Haia. A falta de citação válida fere o devido processo e já seria motivo suficiente para a empresa não ser obrigada a cumprir a ordem estrangeira. Ou seja, do ponto de vista americano, as empresas nem foram devidamente notificadas das decisões do Moraes sob os protocolos internacionais, o que as dispensa de qualquer resposta. O uso da Convenção da Haia garantiria que a ordem chegasse oficialmente, mas não garante sua execução – apenas coloca o processo nos trilhos formais, permitindo próximo passo.
MLAT Brasil-EUA (Tratado de Assistência Mútua em Matéria Penal): É um tratado que estabelece procedimentos para que procuradores e juízes de um país obtenham provas, depoimentos, documentos ou efetivem medidas judiciais em outro país em investigações e processos penais. Se as ordens do Ministro Moraes contra Rumble/Truth Social se inserem em investigação criminal (por ex., disseminação de fake news, organização de atos antidemocráticos, que são crimes no Brasil), a via apropriada seria o Brasil expedir um pedido de assistência jurídica aos EUA via MLAT. As autoridades americanas avaliariam o pedido – inclusive se a conduta também é considerada crime nos EUA (princípio da dupla incriminação) – e poderiam então, por meio de uma corte americana, intimar a empresa ou executar a medida (como remover conteúdo, bloquear conta, entregar dados de usuário, etc.).
No caso em tela, nenhuma dessas providências do MLAT ocorreu. Para o juiz americano, isso reforça que as ordens brasileiras não têm reconhecimento legal nos EUA. Vale notar: mesmo se o MLAT fosse acionado, a cooperação não é automática. Os EUA poderiam recusar se entendessem que a medida fere princípios básicos (o tratado permite negar assistência se atenta contra a soberania ou segurança de um dos países, ou se a conduta não for crime no país requerido). No mínimo, porém, seguir o MLAT colocaria o assunto na esfera de diálogo entre os dois governos, em vez de uma imposição unilateral.
Outros tratados e acordos: Em matéria civil, Brasil e EUA não têm um tratado amplo de reconhecimento de decisões. Existem convenções regionais, como a Convenção do Panamá de 1975 (OEA) sobre execução de sentenças estrangeiras e cartas rogatórias, da qual o Brasil é parte, mas os EUA não ratificaram essa convenção específica. Assim, para uma sentença civil brasileira (como a do STJ no caso do YouTube) ter eficácia nos EUA, seria necessário um processo de reconhecimento sob as regras internas americanas (que variam por estado, mas geralmente exigem análise de jurisdição, devido processo e conformidade com a ordem pública). No caso de injunções ou ordens não definitivas, como remoção de conteúdo, é ainda mais complexo: muitos países não executam diretamente ordens provisórias estrangeiras. Assim, não há um caminho fácil via tratado para impor a decisão do STJ fora do Brasil – dependeria de cooperação voluntária da plataforma ou de novos processos em cada país onde se queira a remoção.
Convenção de Budapeste (Cibercrime): Embora não mencionada diretamente nos casos, é relevante notar que Brasil recentemente aderiu à Convenção de Budapeste sobre Cibercrime (entrada em vigor em 2023/2024). Esse tratado facilita cooperação na obtenção de provas digitais para investigação de crimes cibernéticos, incluindo rapidez em atender pedidos de preservação de dados, fornecimento de informações de assinantes etc. Contudo, não trata de remoção de conteúdo ou cumprimento de ordens judiciais de censura/bloqueio, focando mais em acesso a dados e extradição. Logo, pouco impacto direto teria nos casos discutidos, além de reforçar canais de comunicação entre autoridades.
Em resumo, os tratados existentes aplicáveis concentram-se em cooperação processual (Haya) e penal (MLAT). Eles não conferem a um país o poder de impor ordens em outro, mas fornecem meios para solicitar ajuda e eventualmente obter reconhecimento ou execução via autoridades locais. A decisão americana no caso Rumble ressalta a importância de usar esses instrumentos; ignorá-los significa que, aos olhos de um juiz estrangeiro, a ordem do outro país é apenas "papel sem força executiva".