A CONVERGÊNCIA EPISTEMOLÓGICA ENTRE MALATESTA E O FRAMEWORK TREE OF THOUGHTS: UMA ANÁLISE SOBRE RACIOCÍNIO PROBATÓRIO E PROCESSAMENTO DE LINGUAGEM
RESUMO
Este artigo examina as convergências epistemológicas entre a teoria da prova de Nicola Framarino dei Malatesta (1927) e o framework computacional Tree of Thoughts (ToT) desenvolvido por Yao et al. (2023). Através de uma análise comparativa, identificam-se homologias estruturais entre a teoria probatória clássica e os métodos deliberativos de resolução de problemas em inteligência artificial. As dimensões analisadas incluem: (i) exclusão e reforço de hipóteses concorrentes, (ii) objetivação do subjetivo e (iii) transparência heurística. Esta convergência fundamenta uma proposta metodológica de prompting para análise de perícias forenses digitais que integra princípios malatestinianos com técnicas de raciocínio estruturado via grandes modelos de linguagem. O estudo conclui que a racionalidade probatória clássica encontra inesperada atualização nos métodos de busca em árvore implementados em IA contemporânea, sugerindo a possibilidade de uma hermenêutica jurídica computacionalmente assistida e epistemologicamente robusta.
Palavras-chave: Raciocínio probatório; Tree of Thoughts; Heurística deliberativa; Inteligência Artificial; Prompting estruturado.
1 INTRODUÇÃO
A busca pela legitimidade decisória constitui preocupação central tanto no direito quanto na inteligência artificial. No campo jurídico, Nicola Framarino dei Malatesta (1927) estabeleceu princípios fundamentais para a valoração racional da prova, enfatizando que a certeza moral do julgador deve derivar de um percurso lógico demonstrável e socialmente compartilhável. Quase um século depois, o framework Tree of Thoughts (ToT) desenvolvido por Yao et al. (2023) aborda problemática semelhante no domínio da resolução de problemas por grandes modelos de linguagem (LLMs), propondo que decisões confiáveis emergem não do processamento direto estímulo-resposta, mas de explorações deliberativas entre múltiplos caminhos de raciocínio com avaliação explícita de cada etapa.
Esta convergência não parece fortuita. Ambas as propostas respondem ao desafio de fundamentar decisões em contextos complexos onde a incerteza não pode ser completamente eliminada, mas deve ser metodicamente reduzida através de procedimentos racionais e transparentes. Tanto Malatesta quanto os desenvolvedores do ToT buscam métodos para transformar processos cognitivos intrinsecamente subjetivos (a formação do convencimento ou a geração de texto) em práticas objetivamente avaliáveis segundo critérios compartilháveis.
Este estudo propõe-se a analisar detalhadamente as homologias estruturais entre o pensamento probatório clássico de Malatesta e o framework computacional ToT, identificando seus princípios convergentes e explorando como essa convergência pode informar metodologias inovadoras para raciocínio jurídico assistido por inteligência artificial, com foco específico na análise de evidências digitais.
2 METODOLOGIA
Esta pesquisa emprega metodologia analítico-comparativa para investigar correspondências entre o pensamento de Malatesta e o framework ToT. Inicialmente, realizou-se uma análise textual detalhada das obras "A Lógica das Provas em Matéria Criminal" (MALATESTA, 1927) e "Tree of Thoughts: deliberate problem solving with large language models" (YAO et al., 2023), identificando conceitos-chave, pressupostos epistemológicos e procedimentos metodológicos propostos em cada obra.
Em seguida, estabeleceu-se uma matriz comparativa organizada em três eixos analíticos: (i) procedimentos de exclusão e reforço de hipóteses, (ii) mecanismos de objetivação do subjetivo e (iii) estratégias de transparência heurística. Para cada eixo, buscou-se identificar correspondências tanto conceituais quanto procedimentais entre as duas abordagens.
Por fim, com base nas convergências identificadas, desenvolveu-se um modelo integrativo de prompting para análise de relatórios periciais de evidências informáticas, que sintetiza princípios probatórios malatestinianos com técnicas de estruturação do raciocínio derivadas do ToT.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3.1 A Teoria Probatória de Malatesta
Nicola Framarino dei Malatesta concebe a certeza jurídica como um "estado de espírito" cuja legitimidade deriva não apenas do resultado, mas do percurso racional que o fundamenta. Para Malatesta (1927, p. 51), "o convencimento racional" constitui etapa em que o julgador reavalia constantemente os motivos iniciais "para que a certeza não se desvaneça, mas se confirme". Este processo abdutivo envolve a competição entre narrativas até que elementos menos persuasivos sejam descartados.
Um aspecto central da teoria malatestiniana é a exigência de "sociabilidade" da convicção: "o convencimento não deve ser fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ser tal que, exposto a qualquer pessoa racional, produza idêntica convicção" (MALATESTA, 1927, p. 54-55). Esta sociabilidade transforma um estado psíquico em juízo objetivamente compartilhável.
Malatesta também adverte como paixões, hábitos e preconceitos podem "conduzir até ao erro a inteligência" se não forem neutralizados por exame racional (MALATESTA, 1927, p. 53-54). Como antídoto, propõe que a validade das razões seja verificada segundo padrões que qualquer cidadão desinteressado aceitaria.
3.2 O Framework Tree of Thoughts (ToT)
O Tree of Thoughts (ToT) configura-se como um framework computacional que permite a modelos de linguagem resolver problemas complexos através de exploração sistemática de múltiplos caminhos de raciocínio. Diferentemente de abordagens convencionais como Chain of Thought (Wei et al., 2022), que geram sequências lineares de pensamento, o ToT mantém uma estrutura ramificada onde cada "thought" (pensamento) constitui um nó avaliado e expandido segundo critérios heurísticos.
Seu funcionamento estrutura-se em quatro componentes principais: (1) decomposição de etapas intermediárias em unidades de pensamento semanticamente significativas; (2) geração de pensamentos alternativos para cada estado; (3) avaliação heurística de estados que permite determinar quais merecem exploração adicional; e (4) algoritmos de busca como breadth-first search (BFS) ou depth-first search (DFS) que permitem exploração sistemática com capacidade de avanço e retrocesso (YAO et al., 2023, p. 3).
No ciclo de processamento do ToT, cada nó da árvore de pensamentos é avaliado por um "State Evaluator" que atribui valor heurístico a cada estado com base em deliberação explícita. Ramos com baixo escore são podados, enquanto os mais promissores são expandidos e podem ser revisitados através de mecanismos de "look-ahead" ou "backtracking" (YAO et al., 2023, p. 4).
4 ANÁLISE COMPARATIVA
Exclusão e Reforço de Hipóteses
A primeira homologia significativa entre Malatesta e o ToT manifesta-se nos procedimentos de exclusão e reforço de hipóteses concorrentes. Malatesta descreve o convencimento racional como um processo em que o julgador continuamente reavalia os motivos iniciais, descartando narrativas menos persuasivas e reforçando as mais consistentes. Esta lógica abdutiva, que opera por eliminação e confirmação, encontra paralelo algorítmico no ciclo de processamento do ToT.
No ToT, cada "thought" forma um nó que recebe avaliação heurística. Conforme descrevem Yao et al. (2023, p. 3), ramos com baixo escore são sistematicamente podados, enquanto os mais promissores são expandidos e podem ser revisitados através de mecanismos de retrocesso. O ciclo podar-expandir-retroceder implementa computacionalmente o raciocínio por exclusão e reforço que Malatesta considerava indispensável à formação da certeza moral.
Esta correspondência não é meramente conceitual, mas procedimental: ambas as abordagens transformam a avaliação de hipóteses concorrentes em processo estruturado de filtragem progressiva, onde cada caminho é julgado não isoladamente, mas em comparação com alternativas e segundo critérios explícitos.
Objetivação do Subjetivo
Tanto Malatesta quanto o ToT enfrentam o desafio de transformar processos intrinsecamente subjetivos (a formação da convicção ou a geração de texto) em práticas objetivamente avaliáveis segundo critérios compartilháveis.
Para Malatesta, o convencimento judicial precisa transcender o domínio puramente psicológico para adquirir legitimidade social: "o convencimento não deve ser fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ser tal que, exposto a qualquer pessoa racional, produza idêntica convicção" (MALATESTA, 1927, p. 54-55). Esta sociabilidade transforma um estado psíquico num juízo objetivamente compartilhável.
O ToT persegue objetivo análogo ao exigir que o modelo de linguagem "registre cada passo, atribua escores explícitos e justifique escolhas" (YAO et al., 2023, p. 2). O score funciona como contrapartida algorítmica do "peso persuasivo" malatestiniano, convertendo estados internos da rede neural em métricas externamente auditáveis.
Em ambos os casos, observa-se o esforço de estabelecer um protocolo que transforme estados subjetivos (convicção judicial ou representações latentes do modelo) em artefatos objetivamente avaliáveis (motivação judicial ou árvore de pensamentos com escores) que permitem rastreabilidade e verificação intersubjetiva.
Transparência Heurística e Controle de Viés
A terceira homologia concerne aos mecanismos de transparência heurística e controle de viés. Malatesta adverte que paixões, hábitos e preconceitos podem "conduzir até ao erro a inteligência" se não forem neutralizados por exame racional (MALATESTA, 1927, p. 53-54). Como antídoto, propõe que a validade das razões seja verificada segundo padrões que qualquer cidadão desinteressado aceitaria.
No ToT, esta preocupação materializa-se na fase de "State Evaluator", onde o modelo deve atribuir valor a cada estado com base em "heurísticas deliberadas" e não em preferências aleatórias (YAO et al., 2023, p. 4). Ao permitir múltiplas passagens de avaliação ou votação entre estados, o framework busca garantir que a decisão não se cristalize em um único trajeto favorecido por ruído estocástico ou vieses implícitos.
Ambas as abordagens reconhecem que processos decisórios estão sujeitos a distorções, e que a transparência das heurísticas aplicadas constitui salvaguarda essencial contra arbitrariedades. Ao tornar explícitos os critérios de avaliação e permitir sua verificação intersubjetiva, tanto Malatesta quanto o ToT instituem mecanismos de controle que reduzem o espaço para vieses e preferências injustificadas.
Busca Controlada e Otimização Global
Uma quarta homologia, não explicitamente articulada nos textos originais mas derivável de sua análise, refere-se à concepção do raciocínio probatório como processo de busca controlada visando otimização global.
Malatesta trata implicitamente o processo decisório como exploração sistemática de um espaço de possibilidades onde cada hipótese é avaliada não apenas isoladamente, mas em relação a narrativas concorrentes. O objetivo não é simplesmente encontrar uma hipótese plausível, mas identificar aquela que melhor resiste ao teste de refutação e melhor se sustenta num quadro probatório global.
O ToT formaliza esta intuição ao implementar algoritmos de busca (BFS e DFS) que não se contentam com soluções localmente ótimas, mas exploram sistematicamente o espaço de possibilidades, permitindo avanços, retrocessos e comparações globais. Como explicam Yao et al. (2023, p. 3), estes algoritmos permitem "exploração sistemática da árvore de pensamentos com lookahead e backtracking", capacidades essenciais para otimização global.
Em ambos os casos, o raciocínio transcende a mera verificação sequencial de hipóteses isoladas para constituir-se como exploração estruturada de um espaço de possibilidades, guiada por heurísticas explícitas e orientada para soluções globalmente ótimas.
5 APLICAÇÕES PRÁTICAS: UMA TÉCNICA DE PROMPTING INTEGRATIVA
A convergência entre Malatesta e Tree of Thoughts possibilita o desenvolvimento de técnicas de prompting que incorporem princípios epistemológicos malatestinianos em frameworks de raciocínio estruturado para LLMs. Como aplicação prática dessa convergência, propomos uma técnica de Raciocínio Probatório em Árvore (RPA) especificamente voltada para análise de relatórios periciais de evidências informáticas.
O prompt estruturado abaixo exemplifica como essa integração pode ser operacionalizada:
6. Redija conclusão pericial com referência legal explícita.
Esta técnica de prompting incorpora os três eixos de convergência identificados:
Exclusão e reforço de hipóteses: As etapas 2-3 refletem o ciclo malatestiniano de avaliar-peneirar-confirmar, implementando computacionalmente o processo abdutivo de competição entre narrativas.
Objetivação do subjetivo: O formato padronizado do nó e o registro explícito de Score satisfazem a exigência malatestiniana de "sociabilidade" da convicção, tornando o raciocínio probatório transparente e intersubjetivamente verificável.
Transparência heurística: A coluna "Heurística" ancora o escore em fontes normativas explícitas, reduzindo o risco de avaliações arbitrárias e permitindo controle de vieses.
Busca controlada: Ao permitir retrocesso quando o Score cai abaixo de limites aceitáveis, o prompt mantém viva a lógica de busca global característica do ToT, evitando cristalização prematura em caminhos subótimos.
Esta técnica de prompting representa um avanço em relação a abordagens convencionais de Chain of Thought (CoT) pela incorporação de elementos fundamentais do ToT que encontram correspondência na epistemologia probatória malatestiniana: exploração de múltiplos caminhos de raciocínio, avaliação explícita de cada etapa, capacidade de retrocesso e otimização global.
6 DISCUSSÃO E IMPLICAÇÕES
A convergência entre Malatesta e o ToT transcende o interesse puramente acadêmico, sinalizando possibilidades promissoras para o desenvolvimento de ferramentas de raciocínio jurídico assistido que preservem princípios epistemológicos fundamentais da tradição probatória.
Uma primeira implicação refere-se à possibilidade de superar a aparente dicotomia entre raciocínio jurídico humano e processamento algorítmico. As homologias identificadas sugerem que, adequadamente estruturados, grandes modelos de linguagem podem implementar processos deliberativos que mimetizam aspectos fundamentais do raciocínio probatório humano: a consideração simultânea de múltiplas hipóteses, a avaliação comparativa segundo critérios explícitos, a capacidade de revisar avaliações preliminares e a busca por coerência global.
Uma segunda implicação concerne ao valor pedagógico dos frameworks deliberativos como o ToT. Ao explicitar cada etapa do raciocínio, registrar avaliações intermediárias e documentar caminhos não seguidos, tais frameworks tornam transparente o processo decisório, facilitando sua comunicação, verificação e aprendizado. Este aspecto ecoa a preocupação malatestiniana com a "sociabilidade" do convencimento, transformando o raciocínio probatório de caixa-preta em processo passível de escrutínio intersubjetivo.
Por fim, a técnica de prompting proposta ilustra como princípios epistemológicos clássicos podem informar o design de interfaces entre humanos e sistemas de IA, preservando valores como transparência, rastreabilidade e verificabilidade em contextos de tomada de decisão assistida.
7 CONCLUSÃO
A análise comparativa entre o pensamento probatório de Malatesta e o framework computacional Tree of Thoughts revela convergências significativas que transcendem as diferenças temporais, contextuais e tecnológicas entre as duas abordagens. Ambas compartilham princípios epistemológicos fundamentais: a concepção do raciocínio como exploração sistemática de múltiplas hipóteses, a exigência de transparência nos critérios de avaliação e a busca por procedimentos que transformem processos subjetivos em artefatos intersubjetivamente verificáveis.
Esta convergência sugere que o framework ToT, originalmente desenvolvido para aprimorar a resolução de problemas em grandes modelos de linguagem, pode ser reinterpretado como implementação computacional de princípios probatórios com longa tradição no pensamento jurídico. Reciprocamente, a teoria probatória de Malatesta oferece fundamentos epistemológicos que podem orientar o aprimoramento de interfaces entre raciocínio humano e processamento algorítmico.
A técnica de prompting proposta – Raciocínio Probatório em Árvore (RPA) – exemplifica como essa convergência pode materializar-se em ferramentas práticas que integrem o melhor de ambas as tradições: a robustez epistemológica do pensamento probatório clássico e a capacidade de exploração sistemática característica dos frameworks computacionais contemporâneos.
Futuros desenvolvimentos poderão explorar essa convergência em aplicações mais amplas, incluindo análise de jurisprudência, avaliação de consistência normativa e auxílio à deliberação judicial. Em todos estes contextos, o princípio orientador permanece o mesmo: a legitimidade decisória repousa não apenas no resultado, mas na transparência, rastreabilidade e verificabilidade do percurso que o fundamenta.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 out. 1941.
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. ISO/IEC 27037:2012 – Guidelines for identification, collection, acquisition and preservation of digital evidence. Geneva, 2012.
MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 2. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1927.
WEI, J.; WANG, X.; SCHUURMANS, D.; BOSMA, M.; CHI, E.; LE, Q.; ZHOU, D. Chain of thought prompting elicits reasoning in large language models. arXiv preprint arXiv:2201.11903, 2022.
YAO, Shunyu; YU, Dian; ZHAO, Jeffrey; SHAFRAN, Izhak; GRIFFITHS, Thomas L.; CAO, Yuan; NARASIMHAN, Karthik. Tree of Thoughts: deliberate problem solving with large language models. arXiv:2305.10601, Princeton University & Google DeepMind, 2023.